Por mim, a vida seria feita só de sábados.
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Estive algumas vezes no velho Pacaembu vendo jogos. Quase sempre fiquei naquele canto da arquibancada à direita das cabines de rádio que tinha bancos de madeira e ficava perto do tobogã. Era a arquibancada que podíamos pagar; para mim, míope, era ruim, porque não enxergava direito o que acontecia no gol dos portões de entrada.
Na primeira vez, em 1980, vi o Palmeiras perder para o Juventus por 1×0. O gol deles, de cabeça, foi na meta do tobogã, e eu o vi direitinho. Gritei palavrões, e meu tio Oswaldo, que tinha me levado, me repreendeu muito severamente. Havia um – um só – juventino nas arquibancadas, comemorando muito. Alguém perto de mim disse:
— Vâmo lá dá um pau nele.
E outro respondeu:
— Deixa. Senão a torcida dos caras acaba.
E riram.
Não chorei nesse dia; saí mudo e furioso. Lembro de faixas da TUP e da Palchopp; a Mancha Verde ainda não existia; aliás, foi formada por, entre outros, membros da Palchopp.
Em outra, exatos dez anos depois, em 1990, acompanhei meu irmão num jogo do Corinthians – eles ganharam da Ponte Preta, 1×0, belo gol do Neto fintando meio mundo. O gol foi na meta do portão de entrada; já de óculos, o vi bem. Estávamos perto da torcida da Ponte Preta, que entoava cantos ao seu goleiro, Brigatti, assim: bri-gá-tê, bri-gá-tê. Tempos depois ele virou técnico e dirigiu a própria Ponte Preta.
Nos dois jogos, os alambrados eram vigiados por policiais militares com cachorros (hoje vão com escudos).
Entre essas duas ocasiões, em 1981, um encontro de escolas públicas aconteceu no estádio. Desfilamos (o termo não é exato: caminhamos gingando, moleques de 14 anos tentando parecer malandros) pela pista olímpica à beira do gramado. Lembro do calor, do barulho, da impressão tremenda que as arquibancadas cheias faziam em quem estava lá embaixo. Fiquei maravilhado, mas não consigo lembrar qual era a solenidade. Et pour cause.
Era uma delícia ver jogos no velho Pacaembu, como deve ser vê-los no Olímpico de Montevidéu. Muita luz, muito vento, o som da torcida corre como ondas pelas arquibancadas, se enxerga tudo. E para lá das marquises se vêem árvores e telhados das casas bonitas do Pacaembu, bairro que ainda é bem mas, como a cidade inteira, já foi muito melhor.
O Pacaembu chegou a ser o maior estádio do Brasil entre a sua inauguração, em 1940, e a abertura do Maracanã, em 1950. Não acredito que a reforma tenha acabado com essas coisas boas de que falei, mesmo que já não haja mais o tobogã – botaram um prédio no lugar; tomara que não feche a visão de nada.
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Escrevi em algum lugar – terá sido aqui? – que só pretendo usar gravata de novo no meu enterro. Digo pretendo como se eu pudesse ter palavra ou opinião nas minhas vestes desse dia, como se eu ainda fosse o dono da carcaça que vão enfatiotar. Mas enfim, digo isso mais para testemunhar contra as gravatas do que para tratar das modas de quem abotoa o paletó.
Uma das poucas coisas físicas que meu pai deixou quando morreu foi um punhado de gravatas. Deixou também um paletó surrado, que ele usava para ir trabalhar e que me serviu durante um ano mais ou menos (sou hoje mais alto do que ele era). Mas deixou as gravatas, aquilo que Bertie Wooster chamava de “o adorno dos cavalheiros”.
Entre as muitas coisas que não aprendi com meu velho estão os nós duplo e Windsor das gravatas. Nas vezes em que precisei me adornar com as dele, usei o nó simples, que fica meio torto (mais torto ainda quando entregue à minha habilidade), e que já esqueci como se faz.
O velho não era nenhum Beau Brummell, não era nenhum arbiter elegantiae, mas sabia se arrumar; eu tenho as noções, mas não as exerço: em matéria de indumentária, estou mais para o tiozão mecânico da rua Borges de Figueiredo do que para Capitão Fausto.
Mas as gravatas. São dos anos 60 e 70 (ele não teve tempo de comprar novas nos anos 80 e nem, graças a Deus, de se horrorizar com as de tom metálico que se tornaram populares nos anos 2000). Nenhuma delas tem cores espalhafatosas. Só uma – a mais anódina de todas, azul com finas listras brancas transversais – é de marca, Pierre Cardin. Quase todas são de panos com texturas sedosas, ainda que nenhuma seja de seda, e têm a luminescência fraca dos panos bons, aquela que aparece quando se joga luz em cima. Usei todas quando isso foi exigido de mim por três meses, há quase trinta anos, no meu emprego da época.
Não quero mais usar gravatas, e entretanto tenho orgulho dessas, gosto de abrir o guarda-roupa de vez em quando e olhar para elas. São minhas: é mais um contato comigo mesmo, com o homem que fui um dia, numa certa circunstância (um bom cão farejará nelas o meu cheiro), do que com o meu pai.
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“Eu sou eu e minha circunstância”, escreveu José Ortega y Gasset num livro chamado Meditação do Quixote (tem edição nacional recente da editora Ecclesiae). Tentei ler esse livro e achei bem chato; é possível até que o tenha abandonado. Use essas informações, amigo, para avaliar o mau leitor que sou.
Mas a frase é ótima e verdadeira: eu sou eu e o que está acontecendo comigo ou ao meu redor. Eu sou a mistura do meu espírito com as marés do meu tempo. Eu estou aqui, balançando na barca tentando dar um nó numa gravata que pertenceu ao meu pai, entendendo pouco ou nada, esperando a hora desconhecida. Você me ouve acima do barulho da borrasca, eu ouço a outros, e vamos assim, contando piadas e dividindo impressões, tristezas, lembranças enquanto a coisa vai e vem, sobe e desce e todos, um por um, caem pela amurada.
Somos assim, amigo: homens, pobres homens.
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Borges também não gostava de Ortega y Gasset. Uma das muitas coisas desairosas ditas por Borges contra o espanhol, e anotadas com cuidado por Bioy Casares, é esta:
Borges me diz que podem-se distinguir duas maneiras de escrever mal. Uma é por descuido, que não tem muita importância; por exemplo, a maneira como são escritos muitos livros de filosofia e de tema científico. A outra é pela perversão do gosto do autor; por exemplo, quando Ortega y Gasset chama as mulheres dos tribunais de amor provençais de fêmeas civilizadoras. BORGES: “Por que fêmeas? Por que civilizadoras? Queria exibir seus conhecimentos etimológicos. Baroja diz que Ortega está bem, mas que o Gasset é catalão demais, e desconfia dos produtos da firma Ortega y Gasset”.
Adolfo Bioy Casares, Borges, p. 178.
Soa birrento, e talvez seja. Mas é muito melhor de ler do que o sr. y Gasset.
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Lembrei de um xingamento muito pesado no meu tempo de escola: anormal. Ser chamado de anormal era mais ou menos como ser chamado de Igor, o corcundinha caolho e dentuço – o anormal, portanto – que ajudava os cientistas loucos em suas maluquices assassinas. A acusação rendia bate-bocas, trocas de empurrões, juras de “te pego lá fora”. A ninguém ocorria normalizar a anormalidade.
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Domingo à noite.
— Tô indo à missa – anuncio.
Minha filha:
— Com esse cabelo?
— É o cabelo que Deus me deu.
— Deus também te deu pente, sabia, cientista maluco?
Sou turrão, vou como estou. Mas é mais um perdão para eu pedir.
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Nossa cachorrinha, mestiça de vira-latas com springer spaniel, está com quinze anos, quase cega e com a dentição ruim. Lá de vez em quando dá de não comer; lá de vez em quando a força das pernas lhe falta e ela sofre para ficar em pé. Esbarra nas coisas, segue-nos pelo som e pelo cheiro. Passa dormindo todo o tempo em que não está nos seguindo pela casa. Ultimamente pegou esta mania: se achega a nós, quando estamos à mesa, encosta o rosto às nossas pernas e fica por lá, quietinha, encostadinha. Somos sentimentais e entendemos isso como um primeiro gesto de despedida. Tomara que estejamos entendendo errado.
Quando dorme, ela sonha, e faz movimentos de quem corre. Dizem que os cães enxergam em preto e branco, portanto hão de sonhar em preto e branco, como os filmes da RKO. Quando tínhamos quintal e ela era mais moça, adorava correr atrás de bolinhas, que não devolvia – a gente tinha que tirar a bola da boca dela. Nos seus sonhos RKO, portanto, acho que ela corre atrás de bolinhas cinzentas num quintal cinzento, atiradas por pessoas cinzentas. Corre, corre, corre na alegria dos cães que é correr. Torço para que neles ela seja feliz.
Semana que vem, tudo ajudando, estaremos aqui. E a minha cachorrinha, espero, também. Até lá.
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Author: Orlando Tosetto
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Karen O’Blivious – Senior political correspondent who insists she’s neutral but only interviews people who agree with her.