Para Mário de Andrade, cemitério era sempre e só o Araçá. Caso o amigo resolva ler o Mário (não sou fã, acho chato; mas leia, leia, se quiser), especialmente os contos, vá sabendo: sempre que aparecer a palavra Araçá, a referência é à necrópole, ao campo santo, à última morada, à cidade ou ao país dos pés-juntos.
Por que o Araçá? Talvez porque Mário escrevesse quando a cidade era bem menor e lugares como a Quarta Parada e a Vila Formosa ainda fossem, respectivamente, estação de trem e mato, e o da Consolação ficasse mais distante de onde ele morava, na Barra Funda. Ou talvez porque o nome lhe soasse bonito: araçá é uma fruta (nunca comi, e nem sabia que dava em São Paulo) de cor ora verde, ora amarela, ora vermelha – se for azul, deixa de ser fruta e passa a ser o nome mais belo do medo, como canta lá o Caetano.
O Araçá, muito mais cinzento que azul, tirou seu nome (do qual muitos têm medo) da denominação antiga da Doutor Arnaldo (Estrada do Araçá), e ocupa um quarteirão imenso entre a própria avenida e as ruas Itajobi, Monsenhor Alberto Pequeno e Cardoso de Almeida. Do outro lado da avenida, fronteiros ao cemitério, ficam a bela Faculdade de Medicina da USP, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, o Instituto Adolfo Lutz e o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo; e logo na rua de trás deles estão o Incor, o Serviço de Verificação de Óbitos, o IML Central e o Hospital das Clínicas. É o maior memento mori de uma região onde esses mementos abundam, e onde se luta como se pode contra a própria mors física. Para compensar, também não ficam longe o estádio do Pacaembu e a Avenida Paulista.
O paulistano, ao contrário do portenho, não faz turismo entre tumbas e nem tem suas necrópoles como lugares de passeios culturais, artísticos. O Araçá, a Consolação, o São Paulo, a Quarta Parada não são nossas Recoletas, ou o são apenas na literalidade da função. Quem perambula pelas ruas desses cemitérios, além dos cortejos, dos coveiros e dos raros saudosos, são ultimamente apenas ladrões de bronze, que vendem cruzes, retratos e letreiros por trocados para uma pedra de crack.
Não critico meus conterrâneos. Digo-lhes apenas que se quisessem se argentinizar e resolvessem passear pelas ruas internas do Araçá veriam um sem fim de sobrenomes italianos e, aqui e ali, uns adesivos grudados em algumas campas informando sobre o estado de abandono e pedindo para que a administração seja procurada. Veriam estátuas de anjos e de santos, e várias campas no formato antigo de pequenas capelas, com altares e até, estes muito raros, sacrários. Veriam mármore e bronze, o bronze ainda não roubado, e leriam letreiros com frases saudosas, não poucas em latim, quia pulvis sumus.
Domingo passado caminhei por essas aleias. Fui ao velório do irmão do André Falavigna – o Maurício, levado de repente, como todos foram e serão, pelo coração. Entrei por onde não devia: pelo portão principal do cemitério, na avenida, e tive que fazer o caminho todo por dentro até o velório. Foi assim que tive esse gosto argentino de ver a arte duvidosa das campas, e sujei as solas dos meus tênis com a terra que, depois, há que bater antes de entrar em casa (se você for supersticioso).
Não cheguei a conhecer o defunto quando em vida. No caixão, se parecia muito com seu irmão vivo. Oriundi que são, e palmeirenses históricos, puseram nele uma camisa do Palmeiras, ou, melhor dizendo, uma do Palestra, a que o time usou em 1915 e foi brevemente revivida em 2014: verde com uma faixa branca larga no meio, por escudo a Cruz de Savóia vermelha (há também uma versão com a cor azul no lugar do verde, pois o azul era a cor oficial da casa, daí a seleção da Itália jogar sempre de azul) e a faixa de campeão paulista de 2025, título que hoje, 19 de março, parece já perdido.
No Araçá somente o velaram; de lá, o corpo saiu para o crematório, onde precisa esperar dois dias antes de ir ao forno. Saindo o furgão que o levava e às coroas de flores, o amigo André solta o grito:
— Palestra!
Disse grito, mas não foi bem isso: foi um urro, um desses berros que se solta com a cara vermelha, até meio roxa, as mãos fechadas, atirando o corpo pra frente. Quase no mesmo instante outros gritos de apoio se seguiram:
— Palestra! Palestra! Palestra!
Esses meros gritos, meros ecos, não urros: a resposta pronta e firme ao chamado, mas não o próprio chamado.
Ora, eu também sou Palestra, o amigo está cansado de saber, mas minha palestrinidade não é tanta, nem meu caráter tão forte. Porque é isto: quem conclama põe no chamamento sua força, que é a do caráter: o líder é líder por ter caráter de líder. Eu não o tenho: me uniria ao grito por estar entre os que foram conclamados, arrastado entre eles, levado no aluvião, inerte como tora num rio ou estourado como búfalo numa manada. É assim que se faz na arquibancada, e, mais ainda, na batalha. Mas o primeiro grito, o urro inicial, nunca teria sido o meu. Eu seria um bom soldado, talvez até um bom sargento, mas nunca general, bom ou mau.
Sou Palestra, o dia era de ser Palestra, entendi e gostei. Mas fiquei em silêncio. Teria me unido aos brados dez, quinze, vinte anos antes, ou se a idade não me tivesse ensinado o peso da minha fraqueza e assim me posto de parte, me feito evitar a mentira de querer ser o que não sou mais. Como o centurião, meu canto é credo, Domine, sed adjuva incredulitatem meam.
Choveu muito em São Paulo na semana passada. Uma ou duas das tempestades matutinas foram cheias de vento, o que, nos últimos tempos, tem querido dizer desgalhamentos e consequentes problemas com rede elétrica e carros amassados. Quem anda pela Doutor Arnaldo, na calçada do cemitério, tem de um lado seus muros e do outro, à beira da guia, muitas árvores. Em meu caminho pro metrô, fui passando pelos galhos arrancados delas nos temporais, ordeiramente encostados aos muros, à espera – tomara – de recolha. Folhas mortas no muro dos mortos. Lembrei do final da Canção de outono, de Verlaine, como Guilherme de Almeida a traduziu:
E vou à toa
no ar mau que voa.
Que importa?
Vou pela vida,
folha caída
e morta.
* * *
— Você conhece a lenda: quando morre um palmeirense, se no dia tiver jogo, o Palmeiras ganha.
Mas perdeu.
Lenda é lenda. Só.
* * *
Beber o morto não é coisa de italianos. Contar piadas do e com o morto no velório é. Entre os homens do norte; os do sul são fúnebres, e as mulheres de qualquer quadrante se escandalizam (ou fingem se escandalizar).
Meu avô, Samuel Abramo Tosetto, era nortenho (vêneto) e morreu em 1962, dos machucados que lhe vieram por ter sido arrastado por um “camarão”, um bonde, na Rangel Pestana. Não sei bem o que houve, se prendeu o pé no estribo ou roupa em algum canto; como, ao ser arrastado, aterrou o veículo, deve ter levado um choque elétrico também. Raro Tosetto a não ir de câncer ou de infarto, nossas tradições. Nos quinze anos em que lhe sobreviveu, minha avó nunca tirou completamente o luto. Não era luto mórbido, entretanto: era uma condição de viúva que, se não respeitada, a faria se sentir má, errada. Não o chorava pelos cantos, não lhe encomendava mil missas. Rei morto, rainha posta: levava sua casa com mão de ferro.
Havia um retrato do meu avô na casa das tias, tirada na juventude dele. Parecia-se, guardadas as proporções, dados os descontos e feitos os abatimentos e ajustes, com o jovem Al Pacino. Nortenho, mas com cara de terrone. Não seria descabido imaginá-lo limpando as unhas com um punhal, mas foi a vida toda carpinteiro e, até onde sabemos, nunca matou ninguém, nunca left the gun and took the cannoli.
O Brasil parece foi tirando dos oriundi a hipocrisia da morbidez. Passaram a beber seus mortos e a lembrá-los sempre com humor, sempre no que tinham de engraçados, de esquisitos, de brigões, até no que tinham (pouco) de sábios. Quando me sento com meu irmão e começamos a lembrar dos nossos mortos, terminamos sempre rindo muito da feiúra, da chucrice, do mau-humor da nossa gente.
Não duvide, amigo, de que seja um jeito de honrá-los.
* * *
Uma bronquinha que eu tenho – bronca suave, sendo eu um sujeito suave – é com a expressão “gosto de pensar que”. Diminuo a bronca pondo a frase em uso.
Gosto de pensar que tenho trinta anos de novo, que sou bilionário e que estou com a cabeça no colo da jovem Marion Cotillard; ela vai pondo uvas italianas doces e frescas na minha boca enquanto me conta, em francês (não entendo francês, graças a Deus) como foi seu dia.
Gosto de pensar que, nos últimos cento e oito anos, o Palmeiras venceu todos os derbies por no mínimo seis a zero.
Gosto de pensar que de hoje em diante nunca mais haverá, em lugar nenhum do mundo, temperatura acima dos 21 Celsius.
Gosto de pensar que o amigo gosta desta newsletter, e seguirá gostando até a semana que vem (gosto de pensar que estaremos os dois vivos até lá).
Salve, vale.
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Author: Orlando Tosetto

Karen O’Blivious – Senior political correspondent who insists she’s neutral but only interviews people who agree with her.