Venho voltando do almoço. Cruzo com dois sujeitos de ar muito nerd. Um deles está dizendo:
— … é a apologia informal da distopia, sabe?
Devo ter ouvido tudo errado, mas agora estou distraído pensando no Deckard defendendo o mundo do Blade Runner numa mesa de bar.
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Esta newsletter sai na quarta, sábado já será carnaval. Aqui em São Paulo a praga dos tais bloquinhos (por que no diminutivo? Por que não chamá-los de blocos? É para que não os confundam com tijolos, paralelepípedos?) já começou há alguns dias.
Li por aí que em Israel já existem drones bombardeiros. Acaricio na mente ideias impublicáveis.
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Coisas de São Paulo: onde há bloquinhos – tijolos, paralelepípedos – há pessoas segurando cartazes circulares onde está escrito “apoio ao turista”. Vi isso sábado passado, saltando do metrô Fradique Coutinho.
Como soa estranhíssimo, para gente da minha idade, haver turismo carnavalesco em São Paulo, comecei a pensar que o tal turista deve ser, também ele, um sujeito muito estranho. Fiquei a procurá-lo com os olhos.
Ao ver a solicitude da turma de apoio, e os olhares e dedos dos bloquinhistas (tijolistas, paralelepipedistas) a me acompanhar, entendi: o turista era eu.
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Acho que sou um destruidor de casas. Ou melhor: que sou de mau agouro para elas. Assim como, por exemplo, o recuo excessivo do mar é o agouro do tsunami, o fato de eu morar numa casa é o agouro de sua condenação.
Pois é, eu me dou toda essa importância.
Senão vejamos, como dizem os rappers. A primeira casa em que morei, a da minha avó, não chegou exatamente a ser posta no chão, mas deixou de ser casa em 1981, incorporada à loja sobre a qual estava. A segunda casa onde vivi, por breves meses em 1968, no sítio que pertencia ao meu avô materno, foi ao chão por volta de 1970. A terceira casa, numa vila no final da rua Maria Marcolina, já na Praça Padre Bento, se aguentou até bem entrados os anos 2000, mas virou estacionamento (não percebi quando). A quarta casa, um apartamento na Rua Maria Marcolina, também foi incorporada a uma loja. A quinta casa, na Rua Almirante Barroso, foi ao chão. A sexta casa, na Rua Monte Horebe, em Itaquera, hoje é uma das pistas da Jacu Pêssego. A sétima, na Rua Rio do Oeste, Vila Carmosina, essa ainda está em pé, mas muito modificada. A oitava, na Rua Beira Alta, Vila Regina, ainda está lá, igualzinha. A nona, um apartamento na Rua Bento Ribeiro, Vila Regina, também ainda se aguenta. A décima, minha casa anterior, foi vendida e vai logo ao chão.
Às vezes penso em personagens de livros antigos e nos solares de suas famílias. Me comparo com Usher, sem seus achaques e frescuralhadas (e sem insinuações de incesto), só vendo os tijolos caindo enquanto tanjo uma lira imaginária.
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Saio da estação do trem. À minha frente vai uma mulher, pela aparência uns dez anos mais nova do que eu (já, portanto, entrada nos ocres anos) que tem, tatuada no braço esquerdo, a frase je ne regrette rien, em francês mesmo, “não me arrependo de nada” ou, como já ouvi dizer, “não sinto falta de nada”, segundo cantava Edith Piaf com sua voz de cabra.
Penso: sorte sua, moça. Eu cá, ora, eu regréto, eu me arrependo e sinto falta de um monte de coisa.
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Reconstrução onírica de livros nunca lidos
É uma versão do Pierre Menard e é simples: escolho um livro que nunca li e o reescrevo a partir dos meus sonhos. Ou a partir de sonhos que não sonhei, mas inventei. Depois alguém que leu o tal livro vai e lê a minha reconstrução – sempre muito menor, limitada ao argumento – e conclui sozinho se cheguei perto do original.
Esse alguém pode ser você, amigo.
Veja lá.
Grande sertão: veredas
Eu estava diante de um volume imenso, um in-folio acorrentado a uma parede de pedra, com um lápis e um pergaminho malcheiroso nas mãos, tendo que escrever uma redação explicando por que, no título do livro, vem, depois dos dois pontos, um “veredas” e não um “cacildas” ou um “cerejas” ou um “Verinhas”. Se sobrasse espaço, eu podia tentar explicar também os dois pontos. Tive uma ideia, mas o lápis estava sem ponta, e eu tinha que apontá-lo raspando-o na parede. Enquanto fazia isso, pensava coisas como “foi assim que o homem dominou o fogo”, e “caramba, esse troço não vai”. Demorou muito e eu acordei.
É mais ou menos por aí?
O amante de Lady Chatterley
Eimillyn queria ser mãe e resolveu tentar uma simpatia indiana infalível com o marido: fazer amor sob um elefante na sua (dela) semana fértil. O elefante apareceu espontânea e gentilmente no sonho, numa dessas praças cheias de capim seco e alto de que há tantas em São Paulo, já com um calendário enorme da Casa Mimosa pendurado do lado, todo ele calendário em kanjis vermelhos e dourados. Eimillyn e o marido se entregavam ao intercurso com uma certa discrição e sem muito ruído; pessoas adultas vestindo fraldas passavam para lá e para cá e comentavam: eles não podem interromper o ato, se o elefante sair andando eles vão ter que ir se arrastando atrás, por isso ela não pode tirar a roupa, acaba machucando as costas, é muito difícil, é admirável.
Lady Chatterley, suponho eu, não se chamava Eimillyn. Confere?
Bhagavad-Gita
Tinham me dito que abriram uma lanchonete na sala do apartamento da minha mãe. Fui para lá, preocupado. Cheguei e era verdade. Por trás do balcão – coxinha, guaraná, café de coador, estufa cheia de esfirras abertas – um vitrô basculante imenso, cheio da luz clara mas não quente do outono. E o chão ainda era de tacos. O lugar estava meio vazio.
É tipo a realidade social da Índia de hoje, menos o sol manso. Ou não?
Capitães da areia
Márcia desmaiou, foi pro hospital. Amadeu foi visitá-la, mas a cama dela não estava numa enfermaria, e sim no meio de uma agência enorme do Bradesco. Amadeu flutuava e a via de cima, a cama dela sobre um tapete verde entre as mesas dos gerentes; ele a beijava e saía muito satisfeito, estava tudo bem; por uma porta lateral da agência, entretanto, ele via fumaça e fogo: um foguete subia e caía quase imediatamente, fazendo um arco apertado no céu. Amadeu achou que era assim mesmo. Pegou o ônibus para o Belém, adormeceu durante a viagem, e quem acordou fui eu.
Life is but a dream, já dizia a Beyoncé.
1Q84
Sayuri é um robô triste. Chove em Tóquio. A cara dela é triste. Chove em Nagóia. Seu coração está fechado para o amor. Chove em Saitama. Ela nunca sorri. Chove em Quioto. Ela sai por aí matando gente com uma espada toda tecnológica. Chove na rua Galvão Bueno.
Soou plausível.
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Morreu a Roberta Flack. Caso o nome lhe diga pouco ou nada, dado que ela andava meio esquecida, o amigo certamente saberá quem é se a ouvir cantando The closer I get to you, ou The first time ever I saw your face, ou quem sabe Killing me softly with his song, baladas que fizeram o nome e a fama dela nos distantes anos 70. Baladas, pois é, mas dona Roberta era uma cantora de soul das mais inovadoras. Daí que eu venha lhe recomendar que baixe e ouça o primeiro disco dela, First take, especialmente, se a achar, a versão deluxe de 2020, com dois discos, tudo remasterizado e soando lindamente.
Nesse disco você vai achar baixo e piano de jazz, bateria e voz de soul. Mas um soul diferente: Roberta sabe te fazer balançar, porém o faz como se, caminhando nas nuvens, tivesse um estalo lá em cima e falasse: opa, vamos pôr a turma para dançar. E viesse, e pusesse, e depois voltasse a caminhar nas nuvens. É uma mistura de Nina Simone com Van Morrison na fase Astral Weeks e Thelonious Monk que de repente bota o coração pela boca e, ainda mais de repente, o engole de volta. Ouça o drive final de Angelitos negros e você vai entender o que eu estou falando, caso o coração que saiu pela boca não tenha sido o seu. Ou ouça a alternância entre o tom de conversa fina e os scats alucinados da faixa de abertura, Compared to what?, e depois me diga.
Aliás, o nome inteiro dela era Roberta Cleopatra Flack. Nome esplêndido e justo: ela podia não ser uma farani (ou faradisa, ou faraóa), mas era, de pleno direito, uma rainha.
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O amigo Sérgio de Souza soltou uma edição extra de sua newsletter para falar do passamento, um dia antes da Roberta, do cantor/compositor folk Bill Fay. A newsletter é bonita, como são bonitas todas as newsletters do Sérgio, e eu, que não conhecia o cantor, baixei e ouvi o disco que ele recomenda ali, Countless branches, que eu traduzo como Ramos sem fim ou inumeráveis. É mesmo uma beleza, e a atmosfera desse disco triste lembra muito a dos últimos discos do David Crosby. A atmosfera, não tanto as canções nem, claro, a voz.
Ou seja: vai lá ouvir, vai. Os dois discos, pôxa.
Mas antes dê uma lidinha na minha crônica nova na Crusoé, por favor. O traje é esporte fino (eu sei que você tem uma camiseta falsificada do jacarezinho, nem finja que não). Depois, claro, mergulhe no Bill e na Cleópatra.
Ah, sim: às 18:45 de hoje, você, amigo, era um dos 1.310 assinantes desta newsletter, os quais, somados aos seguidores, perfazem 1.660 abnegados. Portanto, aqui vão 1.660 obrigados, um para cada um de vocês (seus malucos). Tomara que vocês continuem todos por aí.
E até mais ler.
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Author: Orlando Tosetto

Karen O’Blivious – Senior political correspondent who insists she’s neutral but only interviews people who agree with her.