O que tem mais neste mundo: banana ou político russo caindo da janela?
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Não se sabia bem se era uma mulher dando à luz, um porco sendo degolado, dois gatos brigando ou uma derrapada feia. Que foi, que não foi? Mas tudo se esclareceu depressa: era o grito do carnaval.
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Mais um ano em que a avenida não parou para ver o já tradicional desfile do G. R. E. S. Desunidos da Aliança Liberal-Conservadora.
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Já tentei gostar de carnaval. Foi em 1982. Eu tinha 14, quase 15 anos. Fui a dois bailes: um, noturno, num salão que pertencia à Polícia Militar, perto da antiga FEBEM, no qual entrei porque meu amigo Pedro Dias era filho de PM; o outro foi uma matinée para semi-imberbes, no falecido Clube do Minho, Rua Souza Caldas, Brás.
Havia antigamente esse tipo de clube que chamo, por falta de nome melhor, de clube de danças: o do Minho, o Independência, o Avenida. Senhoras e senhores madurões se produziam com abundância de perfumes e cafonice para ir, sextas-feiras e sábados à noite, pegar uma mesa, jantar e, ante uma orquestra, dançar boleros, tangos, gafieira – mais ou menos como hoje senhoras e senhores madurões se produzem para ir a churrascos de motoclubes ouvir classic rock tocado por uma banda especializada e, não exatamente dançar, mas “agitar” – os efeitos físicos são os mesmos, aliás.
O Independência ficava na Rua Carlos Botelho, entre a Bresser e a João Boemer (hoje lá está um daqueles templos linha Las Vegas da Universal). O Avenida ficava na Ipiranga, entre Santa Ifigênia e Rio Branco. Não eram dancings de alugar o par e picotar ticket: eram familiares, o que não impedia, é claro, romances e formação de casais entre a frequência de lonely hearts.
Meu pai não gostava do Independência: achava o público fedido, ou seja, metido a besta. Preferia o do Minho, batizado, sim senhor, em homenagem à província, concelho ou freguesia (não sei distingui-los bem) portuguesa. Ficava, como eu disse, na Souza Caldas, que naquele começo de anos 80 abrigava uma gangue de rapazes que rivalizava, perdendo quase sempre, com a da Tabajaras, na Moóca. Na esquina dela com a Bresser havia um prédio baixo de apartamentos onde moravam Vânia e Vanira Hernandes, as gêmeas do basquete, feias e arruaceiras (eu também era feio, mas não arruaceiro). Foram minhas colegas de classe em 1980. Vânia, se bem me lembro, era banco da Hortênsia na seleção. Duvido que qualquer uma delas se lembre de mim.
Pois lá me fui, ao Clube do Minho, na companhia do já mencionado Pedro Dias, numa tarde de sábado de 1982, quinze anos ainda por fazer e sonhando vagamente em perder a virgindade – eu achava que os bailes de carnaval todos, incluindo as matinées para semi-imberbes, eram povoados de ninfomaníacas que se entregavam a um estalar de dedos ou a troco de um sorriso. Achava isso ou tinha esperança de que assim fosse. Não sabia nada do mundo, nem sequer que o mundo é o mais rígido dos professores. Mas estava em caminho de aprender.
Ora, o que havia, em vez de pré-adolescentes nuas e resfolegantes, era uma orquestra tocando alto demais marchinhas velhas e sambas de enredo com letras idiotas, calorão, bebidas a preços proibitivos e nenhum lugar onde sentar. Eu nasci preguiçoso e me canso depressa: tem que ter um lugar onde sentar. Senão desanimo.
O baile noturno foi pior ainda. A mesma coisa que a matinée, mas mais cheio, mais quente, mais caro, mais alto. Tive que esperar, sóbrio, suado, sem dinheiro e sem companhia feminina, o retorno dos ônibus às cinco da manhã para poder voltar para casa. Uma reflexão rápida na segunda-feira me fez concluir que essa “festa da alegria”, como a chamam por aí, foi para mim da tristeza, até da amolação, e não me servia.
Às vezes me pergunto se não foi essa falta de perseverança que me impediu de ser um novo Sargentelli, Chacrinha ou Miéle; que, se eu tivesse insistido, teria gostado ou no mínimo pegado mulher mais cedo, e talvez até feito vida no metiê. Quizás, quizás, quizás, como reza a letra de um bolero muito tocado no Clube do Minho, imortalizado por Nat King Cole em versão não muito bolerenta. Me pergunto sabendo muito bem que a resposta é não. Em todo caso, agora é tudo questão acadêmica.
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Eu frequentaria uma academia que pusesse questões desse gênero.
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Mora na filosofia. Mas de favor.
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Caso o amigo tenha inclinações antropológicas, um desses clubes de danças ainda sobrevive: o Piratininga, na Alameda Barros, Santa Cecília.
Não sei se o aspirante a sócio tem que enfrentar o sistema de bola branca/bola preta. O amigo verifique, se quiser.
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Uma coisa encantadora do mundo das escolas de samba é a maneira como as pessoas abrem os braços, batem no peito e erguem o queixo para afirmar, valentes, ousadas e de todo o coração, verdades universais como “que maravilha” e “é isso aí (é isso aí)”.
Só uma pedra não se comove.
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— E você, o que vai fazer no TRÍDUO MOMESCO?
— Vou triduar as momescagens. E você?
— Vou momescar as triduações.
— Você é sempre do contra, né?
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Eu faço penitência na Quaresma, mas não dou adeus à carne – no sentido fágico. Sextas-feiras e dias de jejum à parte, continuo devorando cadáveres de animais em suas formas cozidas, fritas e assadas. E também não dou, é claro – embora devesse, por hipertenso – adeus à gordura: venham a mim as calabresinhas, os salaminhos, as peles crocantes do frango à passarinho. Minhas terças-feiras são gordas o ano inteiro.
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Não vi Anora. Não vi Oppenheimer. Não vi Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Não vi No ritmo do coração. Não vi Nomadland. Vi Parasita, e lamento muito, porque é uma merda. Não vi Green book: o guia. Vi A forma da água, e lamento outra vez, porque é outra merda. Não vi Moonlight: sob a luz do luar. Não vi Spotlight – segredos revelados. Vi Birdman, e achei outra porcaria. Não vi 12 anos de escravidão.
Ou seja: não vi dez dos últimos treze vencedores do Oscar de melhor filme (nas demais categorias o percentual é mais baixo ainda). E não sei nem quando ou se os verei. Ao contrário do que possa parecer, não é por birra. É uma mistura de muitas coisas: falta de tempo, às vezes de dinheiro, e no geral muita desatenção ao cinema em si, principalmente a partir do ano 2000. E muita desatenção ao próprio Oscar, cuja cerimônia foi ficando cada vez mais chatinha e perdeu – por exemplo – Steve Martin dançando e se fazendo de capado para zoar Traídos pelo desejo (que eu vi uns dez ou quinze anos depois de ser levado no cinema). É verdade que o Oscar também não desceu ao nadir de ter o detestável Ricky Gervais como host, mas que anda chato, anda.
Outra coisa: ir ao cinema em São Paulo deixou de ser uma coisa civilizada. Oitenta por cento das exibições é em dublagem, e o público anda cada vez mais malcriado, falando alto o tempo todo – e arranjando briga física com quem reclama. Os únicos horários em que ainda se pode ver um filme tranquilamente são os de meio de tarde durante a semana. Ou ir ver aqueles filmes obscuros do Afeganistão num cineclube, o que não é nem nunca foi a minha praia.
É assim que andam empurrando, sem fanfarra, o homem comum, o homem médio, para as catacumbas.
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A propósito: vi o trailer do filme do Bob Dylan e pareceu coisa da Marvel. Tá tudo assim agora.
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É verdade, temos a TV, os streamings, os torrents. Tudo ajuda. Completei por estes dias as lacunas que eram Kramer versus Kramer, Tootsie e Um dia de cão, além de A marca da pantera (que não ganhou Oscar nenhum). Se eu viver até uns noventa e cinco anos, acabo chegando aos prêmios mais recentes.
Seja o meu Spock, amigo: me deseje vida longa e próspera. Se não para ver filmes, ao menos para outras coisas tão interessantes quanto.
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“Pessoas que você talvez conheça.”
E estão lá Júlio César, Dom Pedro I, Elvis Presley, Chacrinha.
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Enquanto a cidade afunda e derrete no calor – domingo ao meio-dia bateu 37 aqui na vizinhança – eu, preguiçoso por natureza, preguiço mais ainda e encerro nossa conversa por aqui.
Semana que vem, menos tórrida segundo a promessa, voltamos, crus e refrescados.
Até lá.
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Author: Orlando Tosetto

Karen O’Blivious – Senior political correspondent who insists she’s neutral but only interviews people who agree with her.