O quase cacófato de “marco civil” me faz pensar em sarna ou catapora.
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Entre as coisas feias de envelhecer está esta: a gente fica hirsuto. Peludo. Digo a gente, mas, enfim, sei lá se não é só coisa da minha etnia, de italianos talvez meio mistos com mouros. Mas é isso: começam a crescer pelos nas narinas, nos lóbulos das orelhas, até dentro das orelhas, e as sobrancelhas também vão ficando mais densas, mais taturânicas. No meu caso, as minhas também têm uns pelos eriçados, semelhantes a antenas de baratas. Orlando Samsa, sim, senhor. Apesar dos sonhos nem tão intranquilos assim.
No último final de semana, fui cortar o cabelo. Já há alguns anos adotei o corte “tiozão militar”: quase careca na nuca e no entorno das orelhas, muito curto em cima. Adotei ou retornei, pois esse era o corte que meu pai me impunha quando eu era menino. Nosso barbeiro…
Aguente aí o amigo uma digressão. Antigamente havia isto de “nosso barbeiro”, como havia o “nosso dentista”, o “nosso pediatra”, o “nosso jornaleiro”, e até minha mãe tinha lá a “sua cabeleireira”, a “sua quitandeira”, etc. A impessoalização da vida veio não sei bem como nem por quê, pois as cidades não ficaram assim tão maiores; o fato é que um sistema de confiança sofreu erosão, desgaste, achatamento ou coisa assim, foi pro beleléu e tudo se tornou diferente.
Enfim, “nosso barbeiro” era o sêo Guilherme; seu salão ou barbearia ficava na João Teodoro, quase esquina com a Barão de Ladário. Ele era velho: óculos, cabelos brancos, magro, até ossudo. Era conversador – qual barbeiro não era? – mas sério, acostumado a mandar no seu pedaço. Cortava meu cabelo curtíssimo; fazia uso de uma tesoura dentada que eu odiava, pois repuxava meus cabelos e doía. E raspava minha nuca e atrás das minhas orelhas com a navalha.
Eram anos pré-AIDS: a lâmina da navalha não era trocada senão de tempos em tempos. Quando ficava cega, geralmente após o uso em cada cliente, era afiada numa tira de couro presa à cadeira em que nos sentávamos. A espuma aderida à lâmina era limpa, meticulosamente, no avental do barbeiro. E usava-se espuma à vontade, fosse para fazer barbas, fosse um pouquinho no corte de cabelo. Aliás, a espuma era feita numa pequena bacia de latão avermelhado, com o uso de um pincel feito – jurava meu pai – de pelo ou crina de cavalo.
Sêo Guilherme ia tranquilo devastando minhas madeixas (em Portugal dizem gadelhas) enquanto conversava com meu pai disto e daquilo. Eu, impaciente, balançava as pernas. Ele comandava:
— Quieto.
Eu aquietava. Depois ficava espiando os tufos de cabelo cortado que caíam sobre o poncho ou camisola (avental é que aquilo não era) que ele me punha. Gosto de vê-los até hoje, quando eles não são mais pretos e sim todos rajados de preto e prata – I grow old, I shall wear the bottoms of my camisolões rolled.
Quando saíamos, o sol batia na minha nuca recém esfolada e ardia, ardia, ardia. A nuca do meu pai não parecia arder; se ardia, ele não dizia.
Ah, sim: eu disse lá no começo que fui cortar o cabelo. Pronto o corte, o barbeiro me perguntou se eu queria que ele tirasse os cabelos das minhas orelhas (eu quis) e desse um jeito nas minhas sobrancelhas.
— Tire só as antenas de barata –respondi.
Ele tirou. Não sou mais, por ora, Orlando Samsa.
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“Meu pediatra” era o bom doutor Marcos. Levado a ele por causa de um problema aparentemente insolúvel de amídalas, o excelente doutor me fez um exame completo e detectou a fimose não inteiramente rompida. Eu tinha uns dez ou onze anos de idade. O médico, antevendo no meu futuro dificuldades e constrangimentos que eu ainda não tinha arsenal para antever, decidiu antecipar a resolução do meu problema. Pediu a meu pai para entrar no consultório (eu estava lá só com a minha mãe), me deitou na sua mesa de exame, abaixou minha cueca e fez os velhos segurarem os meus membros: meu pai nas minhas pernas, minha mãe nos meus braços. Toda aquela movimentação me alarmou; quando fui seguro por aquele leito de Procusto familiar, comecei a tentar dar um jeito de escapar. O doutor me tranquilizou: “Calma, isso não é nada, não fique com medo”. E nem tive tempo de ficar: com um golpe rápido da mão o doutor Marcos, Deus o tenha, rompeu minha fimose renitente e me atirou na primeira geena de dor da minha vida. Ou na primeira de que me lembro com nitidez. Eu juro até hoje, mão sobre a Bíblia, que ouvi o estalo.
— Olha só que beleza, nem sangrou – eu o ouvi dizer enquanto via tudo vermelho e arqueava o corpo como se estivesse sendo exorcizado (aliás, de certo modo, estava mesmo sendo exorcizado). Minha mãe contava, depois, que até chorou. Imagine eu.
Foi mais ou menos como arrancar um dente amarrando-o na maçaneta da porta. Hoje, suponho, não se adotam mais esses métodos bárbaros e viris, essas maneiras de mostrar aos homens desde cedo que haverá dor em suas vidas, que a dor é inextricável do prazer, aliás uma coisa leva à outra, e de educá-los para aguentá-la. Passei alguns anos odiando o pobre médico até entender o bem que ele me fez.
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A bola está na ponta direita do ataque italiano, com Rosato (podia ser Tosato; seria engraçado). Quem volta para tomar a bola dele, na lateral esquerda do Brasil, é Tostão – o falsificado centroavante brasileiro. Ele a passa para Piazza, quarto zagueiro (na seleção; no Cruzeiro, era volante), que a rola para Clodoaldo, volante legítimo, o qual a passa para Pelé, ponta de lança recuado no nosso campo. Pelé a deixa com Gérson, meia, que a recua de novo para Clodoaldo. Este finta um, dois, três, quatro italianos (repito: era volante!) e a entrega a Rivellino, falso ponta-esquerda (era ponta de lança de origem, qual Pelé) também ali pela lateral. Rivellino a lança para Jairzinho, ponta direita correndo pela esquerda; Jairzinho a rola para Pelé, já na frente, que a vira mansa, doce, para Carlos Alberto, lateral direito que, como ponta, entra, bate e faz o gol.
Esse gol – esse gol aí, não outro – inspirou o chamado futebol-total da Holanda, quatro anos depois. Total ou quase, pois não foi campeã. Rinus Michels dizia isso mesmo: a inspiração para aquela Holanda, sem tempo de treinar para a Copa, era o futebol de pelada organizada do Brasil de 70, onde qualquer um fazia todas as coisas. Hoje, claro, os holandeses se comportam como se tivessem inventado a roda.
Mas não inventaram. Copiaram.
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Imaginei aqui um artista nacional famosão qualquer – um ator ou atriz, um rapper, uma pessoa trans que participa de reality shows, enfim, gente atuante na cultura – entrando, digamos, na UPA Doutor Sócrates, em Itaquera, acompanhado de grande séquito de fãs, assessores, correligionários e câmeras, andando devagar com os braços cruzados nas costas e dizendo:
— Ah, então isto é o SUS, hein? Muito bem. Não liguem para mim, continuem, continuem.
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O aluno medianamente inteligente aprende no primeiro semestre de qualquer faculdade que “desenvolver o pensamento crítico” consiste em começar a criticar o que os professores criticam.
Já criticar o que os professores pensam é reacionarismo.
Várias vezes vi repetida uma frase de George Carlin mandando os pais fazerem seus filhos aprenderem a ler e a criticar o que leem.
Ora, se os próprios pais soubessem ler, saberiam que devem ensinar seus filhos a criticar os próprios pais e também o George Carlin.
Mas todo o mundo acha que pensamento crítico é chamar os outros de gado.
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A respeito da cerimônia do Oscar: me pergunto se havia por lá gente com cecê, desodorante vencido, calças caindo.
Esse tipo de festa sempre me lembra uma estação de trem lotada.
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Uso Spotify ocasionalmente, como convidado numa conta da minha filha. Não morro de amores pelo serviço, que entretanto ficou mais simpático porque passou a me permitir usar a caixa de som da minha TV a cabo para ouvir as músicas com qualidade melhor.
Mas a verdade é que prefiro ter minhas músicas em mp3 e flac, guardadinhas em um HD externo. Monto minhas playlists (deve haver um termo bom equivalente em português; vou pensar) como quero, ouço o que quero quando quero, e acho tudo com facilidade. Para ouvi-las, uso um programa simples, leve e bom: o foobar2000. Isto no computador; no celular (Android) uso o excelente Pulsar. Para baixá-las, uso o SoulSeek. E sou feliz assim.
Principalmente porque não fico à mercê dos humores, já do Spotify, já dos artistas que entram e saem dele ao sabor de suas tretas, já por dinheiro, já por ideologia, já porque artista é mesmo tudo doido.
Portanto, se eu puder dar uma dica ao amigo, dou-lhe esta: não se desfaça de sua coleção de mp3, mp4, ogg, flac, enfim, de seus arquivos de áudio. Seja seu próprio disc jockey. Compensa, viu?
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Lendo a newsletter do amigo Cláudio Shikida, me peguei pensando em como seria um bilhete de suicídio escrito por inteligência artificial. Imagino que sairia algo assim:
“Tema polêmico, que divide opiniões, o suicídio vem sendo tratado pelas diferentes sociedades, religiões e culturas, ao longo dos séculos, de maneiras diversas, e com diferentes atitudes. Entretanto, considerando todos os fatos da minha existência, entendi ser…” etc.
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O suicídio, aliás, já foi eufemizado pela imprensa, quando esta era letrada, como “tresloucado gesto”.
Tresloucado me faz pensar numa escala em que haja doisloucado e quatroloucado. Só fingir se matar, tomando menos pílulas do que o necessário, ou cortando só a pele dos pulsos em vez das artérias, seria um gesto umloucado, ou só loucado; já tocar fogo em si mesmo seria cinco ou seisloucado. O tresloucado ficaria reservado para o salto tradicional do Viaduto do Chá.
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A quem interessar possa: o prefixo tres-, cujo étimo é o latim trans (opa), tem o significado de “para além de”: para além de aloucado, mais do que aloucado.
De onde podemos talvez tirar que o excessivamente são seria um cisloucado.
Ah, só melhora.
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Da minha parte, já pensei uma ou duas vezes em suicídio, quando era bem jovem, bem ateu e, segundo me acreditava, bem romântico. A soma dessas três condições já causou muita desgraça neste mundo; escapei por covardia (se matar dói) e porque sou cuca leve – deixei a morbidez logo para lá.
Minto: um restinho de morbidez me faz às vezes pensar na música que gostaria que tocasse no meu enterro. Supondo, é claro, que minha família consentisse em me enterrar com trilha sonora. Ou que eu mesmo consinta nisso, se me for dada vênia para opinar.
Quando morreu meu amigo Eduardo Estrella, seu caixão foi levado do velório à cova ao som de James Brown. Eduardo ganhava não a vida, mas um dinheirinho extra sendo DJ em festas lá pros lados de Pirituba, e era fã exaltado de James Brown – fã mesmo, de chorar e pôr luto quando JB morreu. Seus amigos entenderam adequado que a voz de JB o acompanhasse à morada eterna, e lá se foi ele ao encontro dos anjos ao som de I feel good, Sex machine, Cold sweat, There it is. Foi engraçado e, de modo estranho, também comovente.
Quanto a mim, bah, tanto faz se me levarem em silêncio ou sambando: não vou estar ouvindo.
Mas não descartem o Brandemburgo número três.
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Enquanto você ouve aí sua coleção de músicas, aproveite e dê um pulinho no site da Crusoé para ler a minha crônica nova. Ela vai melhor, se eu puder dar uma sugestão, se lida com o acompanhamento da trilha sonora de A era do rádio, do Woody Allen. Ou com qualquer disco de greatest hits do Artie Shaw. Veja lá se não tenho razão.
E até mais ler.
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Author: Orlando Tosetto

Karen O’Blivious – Senior political correspondent who insists she’s neutral but only interviews people who agree with her.