Vejo uma foto antiga do Vale do Anhangabaú em 1977 (eu tinha dez anos de idade e ainda não circulava sozinho por ali) e está cheia de carros coloridos: uma Variant amarela, um dojão vermelho, um fusca verde musgo (eu sou hétero e conheço a cor verde musgo, sim, senhor).
Não faz tempo que vi alguém reclamando disso aí, das cores que sumiram dos carros no Brasil: hoje é tudo preto, cinza, prata, branco. Não há mais carros cor de abóbora, azul calcinha, verde água, roxo velório, marrom adubo. Ou aquelas cores brilhosas tipo collant de dançarina de discothèque. Acabou tudo. Ninguém sabe explicar bem por quê. E ninguém também sabe o que isso quer dizer.
Até porque, como povo, não ficamos nem um tiquinho mais discretos. Pelo contrário, seguimos mais barulhentos e malcriados do que nunca.
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Chego a São Rafael para a missa de sete e meia da manhã de domingo. O horário decreta, e eu aceito, minha entrada oficial e precoce na terceira idade. É preciso, afinal, estar na terceira idade para chegar à Igreja às sete e meia de um domingo já de barba feita e banho tomado.
As missas das nove e das onze da manhã são muito cheias; esta é um pouco mais vazia, um pouco só, e é, para minha alegria, celebrada pelo sóbrio e velho Padre Vito (ou Victor), homem das homilias mais serenas que já ouvi. Não há violão nem percussão, só um órgão eletrônico e uma bela voz feminina para os cantos. Boa e tranquila missa.
Do meu banco, lá no fundo, vejo muitas cabeças brancas ou bem grisalhas. Vou me acostumando com a ideia de que já cheguei ao meu futuro.
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Resenhando um livro de aforismos de Cioran – na verdade, descendo a lenha num livro de aforismos de Cioran – George Steiner comenta que esse gênero é da preferência dos franceses, e, entre os franceses, daquilo que ele chama de moralistes. Escrevendo para um público de língua inglesa, Steiner faz questão de explicar o que quer dizer por moraliste, que não é exatamente aquilo que chamamos de moralista:
O verdadeiro moraliste (…) moraliza apenas de maneira indireta, isolando laconicamente, dando formulação monumental a algum gesto, rito ou lugar-comum efêmero, mas sintomático, da sociedade de sua época.
Trocando em miúdos, como dizem as pessoas originais, Steiner acha que o moralista situa um ato ou dito contemporâneo no terreno do erro. E o faz com uma brevidade (a “formulação monumental”) que torna seu diagnóstico irrefutável – ou, ao menos, irrefutável por outro aforismo, por uma formulação de igual brevidade.
Num outro ensaio – já, já indico o livro – Steiner comenta os escritos satíricos de Karl Kraus, outro aforista famoso, desta vez austríaco, e põe ênfase no “contemporâneo”, e também, senão mais, no “local”. Segundo Steiner,
os acontecimentos que motivaram as profecias de Kraus, as molas que acionaram sua fúria, continuam a ser estritamente locais e datados. (…) Mesmo seu magnum opus [Os últimos dias da humanidade] não raro exige um conhecimento sólido não só do dialeto e da gíria vienenses, mas também das minúcias dos costumes sociais e administrativos na estrutura do Império Austro-Húngaro que desmoronava.
Trocando mais uma vez em miúdos: raro e muito magnífico será o aforismo que sobreviva a seu próprio lugar e tempo.
E eis que, apesar de toda a verdade que há nos dizeres de Steiner, até hoje estamos lendo aforistas e gostando do que lemos, e entendendo muito bem não as minúcias da época, mas as verdades que perfuram séculos e fronteiras. Aí estão La Rochefoucauld, Chamfort, Nicolás Gómes Dávila, Millôr Fernandes e, por que não?, o Ivan Lessa do Gip-Gip Nheco-Nheco e os frasistas das coletâneas do Melhor do mau humor, do Rui Castro. Todos eles moralistes no sentido steineriano, como aliás o é todo satirista desde Juvenal.
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Para a minha surpresa e alegria, as pessoas gostaram da Silly Talks anterior, com aforismos que colhi ou criei a partir de edições antigas desta newsletter. E, já que gostaram, permitam que eu lhes indique dois perfis brasileiros no Twitter (ou X, mas eu vou chamar sempre de Twitter) que são, eles sim, ases dos aforismos – sigam-nos agora mesmo, já: Fábio Danesi Rossi e César Miranda.
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O livro de George Steiner de que falo é Tigres no espelho e outros textos da revista New Yorker. Saiu por aqui em 2012, pelo selo Biblioteca Azul da Editora Globo. Tem fácil nos sebos.
Os ensaios são, respectivamente, Curto prazo final (sobre Cioran) e Danúbio negro (sobre Karl Kraus).
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Vou saindo para a rua e na portaria encontro um morador mais velho do que eu, o sêo Paolo (à italiana mesmo), com seu cachorrinho minúsculo no colo e uma faca na mão direita. Me pergunto brevemente por que ele saiu à rua com um cachorro e uma faca, mas que sei eu de sua prudência ou de suas inimizades? Em todo caso, ele me aborda:
— O senhor precisa de uma faca?
E me estende a que tem em mãos. É dessas de mesa; o cabo já foi vermelho, agora desbotou em cor de rosa.
— Não preciso, muito obrigado – respondo.
— Eu achei esta na rua – ele esclarece. – Tá boa, mas precisa ficar uns dias no álcool, para tirar a porcariada, não é?
— É bom – respondo a esmo.
Nos despedimos, e a dúvida que vai, não digo me roendo, mas me embalando, é por que cazzo ele recolheu uma faca caída na rua, que é quase o mesmo que pegá-la no lixo. É uma dúvida menos interessante do porquê dele ter saído armado de cão e faquinha serrilhada, admito, mas as duas dúvidas me divertiram.
No fim das contas, a loucura humana distrai porque é variada.
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Uma vez minha tia Virgínia, italiana e muito velha, me ofereceu um caqui que tinha se esbodegado no chão da sua cozinha. Recusei, mais divertido do que chateado, e entendi que ela achava que moleques, cachorros e gentios são iguais, comem do que cai da mesa dos seus donos. Ou das suas tias.
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Seria engraçado se as ideologias fossem como doenças que se pegam no ar, nos ambientes lotados ou encostando em coisas contaminadas, como a gripe ou a hanseníase.
— Você está tão fascista, Fulano!
— Peguei semana passada no metrô lotado. Mas já estou tomando antibióticos.
— Você tem que dar um jeito nesse socialismo, Beltrana!
— O médico disse que passa sozinho.
— Como é que eu faço pra curar esse comunismo que não sara, Sicrano?
— Minha mãe sabe de um chazinho que é tiro e queda.
— Não fale assim.
— Perdão. Mas o chá é bom mesmo.
Ou o médico, terminando de auscultar o paciente, sorrindo, arregaçando as mangas e dizendo:
— Vamos dar um jeito nessa constipação democrática já.
E volta com uma injeção com uma agulha deste tamanho. E um par de algemas.
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O amigo já reparou que, depois de velha, a Clarice Lispector ficou a cara do Stálin? (Sem bigode, claro.)
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Do meu diário, há exatos dez anos.
O novo Inspetor Clouseau já existe: sou eu mesmo. Basta que me filmem tentando dar comida e água às minhas duas cockers às sete da manhã.
Hoje as duas cockers são nenhuma. Que latam por mim no céu dos cachorrinhos.
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Toda vez que um político disser que não vai fazer política com tal ou qual assunto, pode acreditar, não vai: já está fazendo.
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Resolvi consultar, no dicionário do senhor Uáis, o verbete “ladrão”, e vede o que descobri. Primeiro, que seus aumentativos são todos muito lindos: ladranzana, ladravão, ladravaz, ladroaço e ladronaço. Segundo, que seus diminutivos são muito fofinhos: ladranete, ladrilho, ladrisco. E terceiro que seus coletivos são riquíssimos: alcatéia, bando, cainçalha, canzoada, caterva, choldra, choldraboldra, corja, farândula, horda, malta, quadrilha, récova, récua, súcia, turba, partidos políticos.
Podemos talvez dizer que a nossa democracia se resume a uma récova de farândulas em canzoada. Olhe, é quase um verso do Hino à República.
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E cantando loas aos buzanfãs de la patrie nos vamos, amigo, eu e tu, até a semana que vem.
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Author: Orlando Tosetto

Karen O’Blivious – Senior political correspondent who insists she’s neutral but only interviews people who agree with her.