Se cultura e sabedoria embriagassem, o Brasil seria a terra da lei seca.
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Teresina à beira-mar, ou parte de uma viagem ao Piauí imaginário (para o amigo Pedro de Almendra, que quer muito conhecer Teresina).
Você pode chegar a Teresina de avião, mas Congonhas é longe e Cumbica é mais longe ainda; é melhor ir de ônibus. Salte no Parque Dom Pedro II, atravesse o terminal para o lado do metrô e entre na Rua da Figueira no sentido da Rua da Moóca – Teresina começa lá, logo depois da Visconde de Parnaíba, com o nome de Alcântara Machado. O nome lhe soará familiar: talvez você tenha vindo no ônibus lendo as Novelas paulistanas desse escritor. Se o fez, fez bem. Se não fez, faça assim que puder.
Você caminha pelas calçadas sem sombras de Teresina no sentido bairro até o viaduto que passa sobre a linha do trem – trem que, antigamente, ia de Santos a Jundiaí, e hoje vai de Jundiaí até, no máximo, Rio Grande da Serra, mas geralmente não passa de Mauá. Do lado de lá da linha, à esquerda, estará o prédio antigo da Alpargatas, hoje campus universitário, e, à direita, a Rua dos Trilhos, que há anos não tem mais trilho nenhum.
Teresina muda de nome lá na frente, depois do Belém, quando cruza a avenida Salim Farah Maluf: ali ela passa a se chamar Melo Freire. Simbolizam essa mudança um monumento discreto aos rotarianos e o Shopping Metrô Tatuapé, fronteiro à estação. Antes, à direita, sobre a Padre Adelino, está a pequena e simpática ponte estaiada do Tatuapé, sem valor turístico mas simpática porque pequena como uma garçonete anã.
O nome muda de novo uma quadra antes do Viaduto Antônio Abdo, que liga a Conselheiro Carrão à Antônio de Barros: ali Teresina passa a se chamar Conde de Frontin, nome que mantém para bem além da Aricanduva e das lojas do McDonald’s e do Habib’s, célebres naquele ponto da capital piauiense, e para além mesmo da Vila Matilde.
É só pouco antes da Vila Esperança, passando a sede do motoclube dos Abutres, que Teresina se torna Antônio Estêvão (A. E.) de Carvalho, nome que sustenta até a Vila Ré, pois lá se transforma em Dr. Luís Aires. Com esse nome discreto Teresina passa sob o Viaduto Itinguçú, ultrapassa o metrô Itaquera e o campo do Corinthians e passa sob a Avenida do Contorno.
Adiante de tudo isso, já sobre o que outrora foi o leito da antiga linha de trem de Mogi das Cruzes e perto tanto da Pires do Rio quanto da Jacu-Pêssego, Teresina toma o nome de José Pinheiro Borges, que será o seu último e definitivo até que ela termine na confluência das ruas Vinte e Um com Benedito Leite de Ávila, em Guaianazes, não muito distante do limite de município com Ferraz de Vasconcelos.
Nota-se, durante o trajeto, que de fato Teresina não fica à beira-mar.
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Entre o virtue signalling (“o importante é salvar vidas”) e a redação escolar (“o importante é salvar vidas”), fiquemos com o tom do debate nas redes sociais (“o importante é salvar vidas”).
Se você disser, entretanto, que o importante é promover a maior matança, ninguém vai acreditar que você só quer variar um pouco a conversa.
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Pego de troco uma nota de dois reais bem velha, bem rota. Alguém se deu o trabalho (não muito pesado, é verdade) de escrever “Jesus te ama” nas duas faces dela e, na face onde fica o desenho da tartaruga, “Salmo 23”.
O Salmo 23, na numeração que se usa hoje em dia, é aquele que diz “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Acho que escreveram isso no dinheiro como forma de superstição ou de feitiçaria branda, ainda que de inspiração neopentecostal: nada faltará a quem rabiscou, a começar pelas notas de dois reais. Se Deus quis, deu certo.
Gosto dos Salmos. Um romano, num gibi do Asterix, recita no latim da Vulgata Clementina o versículo 10 do Salmo 2: et nunc, reges, intelligite; erudimini qui judicatis terram (“agora, ó reis, compreendei isso; instruí-vos, ó juízes da terra”, na primeira tradução do Padre Matos Soares). Davi decerto compôs esse antes de se tornar rei ele mesmo e ter a chance de intelligere as coisas por si só.
Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas eu, sinceramente, preferia quando se desenhavam bigodes na cara da República.
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Bom mesmo era antigamente, quando só quem falava em “companheiro” era mulher amancebada.
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Um problema com a circulação das minhas veias safenas (estão varicosas) tem-me feito usar meias de pressão, que eu, com nonchalance e fineza de gosto tão minhas, chamo de “meias de velha”. Custam muito caro, especialmente as da marca que os cirurgiões vasculares recomendam, e que por birra não digo qual é – mais de duzentos reais um par. Tudo, é claro, para te deixar parecido com uma trans montada a meio para um show de dublagem ou um bico na calçada da Rua Augusta.
Adicionalmente, minhas pernas, os musculosos (hum) e ora meio escurecidos receptáculos das minhas safenas, demandam a aplicação de um chamado “creme revitalizante”, que vem pouco na embalagem e custa, cada uma, digamos um terço de uma meia elástica. Sim, aqui estou de meias e cosméticos caros. Hello, sailor.
Por derradeiro, para amaciar as safenas, para torná-las menos rígidas do que os radicais de centro e os jornalistas defensores do Governo, tomo, duas vezes ao dia, cápsulas de dobesilato de cálcio, remédio que não entendi bem o que faz nem como age, e que custa ainda mais caro do que o “creme revitalizante”.
Do que se conclui que sai muito caro ter e tratar varizes, e que o que as mulheres gastam com sua toilette e seus achaques não é afinal tanto quanto a gente imagina.
Também se conclui – mas disto já sabíamos – que caro mesmo é envelhecer.
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Palestino é judeu enrustido?
E corintiano? É palmeirense no armário?
A turma do Greenpeace é, nos recônditos dos seus corações, fã de caçadas?
Veganos confessam ao psicanalista que comem bife escondido?
Neopentecostal é católico disfarçado?
E homofóbico, é tudo gay?
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Você sabe mesmo diferenciar tolerância de indiferença?
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Um dos primeiros textos que tive que ler na faculdade de letras foi a explicação laboriosa que Edgar Allan Poe deu da composição igualmente laboriosa de O corvo. O amigo, se quiser ler, o acha por aí na internet com facilidade; o nome é A filosofia da composição. Deixo a dica no espírito de contribuição útil para esta rede em que tantos falam tanto do ato de escrever: de como proceder, de onde tirar as ideias, de como torcer ou destorcer as caraminholas, de quais assuntos e abordagens prestam ou não prestam, de quem afinal é mau e quem é legal, e assim por diante.
A contraindicação é a leitura te fazer notar que Poe às vezes podia ser um chato de galochas.
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Um pouco a propósito disso, conto que venho lendo um romance policial francês, do escritor Jean-Pierre Gattégno (João-Pedro Gatinho?) chamado A noite do professor. O tal professor do título dá aulas de francês a alunos, presumivelmente quase adultos, de um colégio comercial público de Paris. Seus alunos não se interessam nem por ele, nem pelas suas aulas, nas quais ele propõe questões como esta:
Que efeito produz a assonância em a na primeira frase de Salammbô: “Era em Megara, arrabaldes de Cartago, nos jardins de Amílcar”?
Punham-nos questões assim na faculdade de letras. Aliás, não sei se o original francês trata de assonâncias em a ou em alguma outra vogal, e o tradutor brasileiro adaptou; creio que não, por causa da resposta. Mas não se perca de vista: isto está num romance policial. Francês, reitero. Os alunos bocejam; o professor lhes dita a seguinte resposta:
Primeiro, a assonância em a, repercutindo nos nomes próprios, chama a atenção para a excentricidade dos nomes cartagineses e anuncia que o romance vai jogar com o exotismo. Segundo, o a da primeira letra do alfabeto convém à primeira frase de um romance. É uma abertura no sentido musical do termo, como a de uma ópera.
Nada mostra que a pergunta e a resposta sejam indicações irônicas de que o tal professor é um chato pedante e inventor de elucubrações de utilidade e interesse escassos. Não; até desconfio que isso seja coisa do próprio autor, querendo mostrar que está escrevendo um romance policial porque quer dinheiro e mulheres, mas é culto, esperto, interpretador arguto e, portanto, dá para mais.
Mas depois lembrei que Flaubert seria perfeitamente capaz de ter oferecido essas mesmas elucubrações, quer em alguma das suas inúmeras cartas, quer em algum jantar documentado pelos Goncourt, quer em algum artigo de jornal. Não vou, é claro, procurar. Flaubert foi grande, mas era desses: como Poe, podia às vezes ser (aliás, dizem que em pessoa o era o tempo todo) chato pra dedéu.
Em todo caso, a gente pode começar um romance-regionalista-que-dá-voz-aos-oprimidos-de-sempre, desses que, hah, jogam com o exotismo, com esta sentença:
Era no arado de Alexandre Agostinho, áulico de Anderson Aparecido Amâncio, amigo das aroeiras.
A função das assonâncias em a aí é só encher o saco.
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Se o amigo não se encheu o suficiente até agora, arrisque-se lendo a minha crônica nova na Crusoé. Depois, já farto, queira Deus que volte na semana que vem. Até lá.
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Author: Orlando Tosetto

Karen O’Blivious – Senior political correspondent who insists she’s neutral but only interviews people who agree with her.